in Revista de Psicología
Quilombos e quilombolas na Psicologia brasileira: Uma revisão sistemática da literatura
Resumo:
A presente investigação teve como objetivo identificar como os quilombos e os quilombolas têm se constituído como campo de estudo na Psicologia brasileira. Seguindo as orientações do método PRISMA para Revisão Sistemática de Literatura, foram selecionados 38 artigos publicados entre 2003 e 2023, disponíveis nas bases de dados LILACS, SciELO e no Portal de Periódicos da CAPES. A meta-síntese dos estudos foi realizada através da análise de conteúdo categorial-temática, sendo verificado relativo crescimento do número de publicações a partir do ano de 2019. Os resultados indicaram predominância de temas relacionados aos processos identitários, além de estudos voltados à definição de quilombo, à reflexão sobre a saúde nas comunidades e às formas de atuação da Psicologia em territórios quilombolas. Embora a Psicologia ainda não se constitua como um campo de estudo consolidado sobre os quilombos e os quilombolas no Brasil, evidencia-se a necessidade da construção de ferramentas teórico-metodológicas para uma Psicologia “do” quilombo, baseada na valorização dos saberes e práticas quilombolas e na efetiva participação da comunidade.
Introdução
A Psicologia como ciência e profissão, que predominou no Brasil no início do século XX, surge associada a grupos de uma classe social dominante interessada em um projeto de modernização e manutenção da ordem social brasileira ( Lacerda Jr., 2013 ; Yamamoto, 2007 ). Ou seja, os primeiros anos da profissão no Brasil foram marcados por uma visão de sujeito universal e deslocado de sua realidade social. Foi, portanto, a partir da década de 1970, que se intensificou uma leitura crítica do lugar social da profissão e que emergiu um projeto de uma Psicologia comprometida social e politicamente com o contexto brasileiro, preocupada em dialogar com as demandas das populações que tradicionalmente não têm tido acesso a direitos fundamentais (Bock et al., 2022 ; Conselho Federal de Psicologia, 2019).
As comunidades quilombolas no Brasil são consideradas povos tradicionais, que historicamente têm tido seus direitos negligenciados, vivendo de forma precária devido a diversas violações estruturais (Batista & Rocha, 2019; Costa & Edmundo, 2020; Fernandes & Santos, 2016). O conceito de comunidades quilombolas, como um produto cultural e histórico, é atravessado no Brasil por diferentes agenciamentos simbólicos, próprios do campo social a que pertencem ( Silva, 2006 ). O modo como as comunidades se apropriam da definição de quilombo, portanto, é determinante para a construção da identidade do grupo (Fernandes et al., 2020 ). Diante disso, é preciso entender que a definição de comunidades quilombolas a partir de uma perspectiva naturalizante e de heteroatribuição pode excluir os diferentes modos de vida que caracterizam os quilombos, ou seja, pode desconsiderar a própria concepção do grupo e sua tomada de posição identitária frente a essa pertença social ( Silva, 2006 ; Souza & Bonomo, 2021).
Diante dessa reflexão inicial, é importante salientar que diferentes grupos sociais, em diversas temporalidades e espaços, interpretaram o termo “quilombo” de variadas formas (Fernandes et al., 2020 ). No período colonial, por exemplo, quilombos se referiam a africanos escravizados que se rebelaram e fugiram se adentrando nas matas para recriar seus modos de vida (Moura, 2021). Já para alguns autores ligados ao movimento negro, quilombo “recebe significado de instrumento ideológico contra as formas de opressão” ( Nascimento, 1987 , p. 46). Com o Estado brasileiro, por sua vez, com o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (1988), o termo quilombo é ressemantizado em uma categoria jurídica “remanescente de quilombo”. Esta categoria se refere a uma “identidade histórica” (Nunes & Santos, 2021) que passou a ser usada no contexto do reconhecimento dos direitos territoriais do grupo ( O’Dwyer, 2007 ). Apesar do uso do termo quilombo “ressemantizado” estar ligado a políticas afirmativas de garantia de direitos e de redução de desigualdades, Macedo et al. (2021) afirmam que, em certa medida, o Estado reproduz o racismo institucional, e passa a controlar e a regular as condutas das comunidades quilombolas a partir de uma normalização da sua identidade. Essas e outras formas de definir o termo contribuem para um imaginário social sobre quilombos que pode incluir reducionismos e negligenciar os diferentes matizes identitários desta pertença étnico-racial (Fernandes et al., 2020 ).
Em consonância com essa perspectiva de análise, Almeida (2011) afirma que a classificação do termo está relacionada com uma estrutura de poder que não é intrínseca aos sujeitos quilombolas, e sugere que este seja definido por eles mesmos. Segundo Fernandes et al. (2020), é na definição do significado do termo que aparece o primeiro impasse vivenciado pelas comunidades quilombolas, que é o direito de definir a si mesmas. Nesse sentido, é preciso considerar que falar de quilombos e quilombolas no Brasil, atualmente, é dizer de uma luta política, tanto material como simbólica ( Leite, 2000 ), e que o pertencimento do grupo ao território-vivo e os sentimentos de identidade e de territorialidade podem orientar o processo de construção do ser quilombola pelos próprios sujeitos quilombolas (Félix-Silva et al., 2019 ).
Tendo em vista as reflexões apresentadas, a Psicologia como ciência e profissão vem sendo convocada para discutir questões que envolvem o contexto das comunidades tradicionais e quilombolas no Brasil (Pizzinato et al., 2019 ). Diante dessa convocação surgem vários questionamentos, sendo um deles: a Psicologia tem construído ferramentas teórico-conceituais e metodológicas para atuar em comunidades quilombolas? Essas reflexões dialogam com o debate promovido pelo Conselho Federal de Psicologia (2019), por meio do documento de orientações técnicas elaborado pelo Centro de Referência Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) para a atuação de psicólogos junto a comunidades tradicionais, sendo destacada a importância de formação especifica no que se refere às comunidades quilombolas em função de suas peculiaridades e demandas próprias.
Nesse sentido, Fernandes et al. (2022) afirmam que não basta ter uma Psicologia atuando em territórios quilombolas, sem antes construir uma reflexão ético-política para repensar as práticas e as concepções da disciplina nesses contextos. O mapeamento e a caracterização das produções da Psicologia sobre comunidades quilombolas no Brasil ganham relevância social, pois podem configurar-se como uma importante oportunidade para se refletir e discutir o papel que ela desempenha nesses territórios.
Diante de tais reflexões, este estudo se fundamentou em uma pergunta orientadora, seguindo a estratégia representada pelo acrônimo PICo para pesquisas qualitativas (The Joanna Briggs Institute, 2014), onde (P) significa população (quilombos e quilombolas), (I) refere-se ao fenômeno de interesse (produção científica da Psicologia) e (Co) trata do contexto (território brasileiro). Seguindo essa abordagem, o problema que fundamentou o desenvolvimento do presente estudo pode ser resumido por meio da seguinte pergunta: de que forma os quilombos e os quilombolas têm se constituído como campo de estudo na área de conhecimento da Psicologia brasileira? Tal questão instrui o objetivo deste estudo, que consistiu em analisar e caracterizar as produções de artigos científicos brasileiros da Psicologia sobre quilombos e quilombolas no Brasil. A hipótese inicial é de que existem poucos estudos produzidos pela Psicologia brasileira sobre comunidades quilombolas e que este ainda não se constitui como um campo de pesquisa consolidado na área.
Método
Este estudo utilizou as diretrizes para relato de revisões sistemáticas do método PRISMA (Page et al., 2022). Seguindo essas diretrizes, após a definição da questão norteadora, o passo seguinte foi adotar critérios de exclusão e inclusão para a definição da amostra. Optou-se pelos seguintes critérios de inclusão: a) artigos empíricos; b) que tivessem quilombos e/ou quilombolas como tema central no contexto de desenvolvimento da pesquisa; c) que fossem artigos de pesquisadores brasileiros; d) podendo o pesquisador ser psicólogo ou não, desde que utilizasse o campo teórico-conceitual da Psicologia como referência para o estudo; e) com trabalhos publicados ou não em periódicos de Psicologia; e f) sem definição de período temporal da produção. A partir dos critérios de exclusão, não fizeram parte do banco de dados as publicações que: a) não abordaram o contexto das comunidades quilombolas; b) não eram artigos avaliados por pares; c) produções duplicadas; d) não utilizaram campo teórico-conceitual da Psicologia; e f) que não foram produzidos no Brasil.
Para a coleta dos dados, foram selecionados o portal de periódico da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), o SciELO (Scientific Electronic Library Online) e o LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), por serem bases de dados que possuem uma ampla coleção de periódicos científicos em Psicologia. A definição dos descritores, por sua vez, foi feita a partir do DeCS (Descritores em Ciências da Saúde), que indicou como descritor correlato a “quilombo” a palavra “quilombola”.
Tendo em vista que no procedimento de busca durante a fase de préteste foram observadas diferenças no número de artigos identificados em função das estratégias utilizadas, recorreu-se à integração de dois caminhos para o acesso aos dados de interesse: 1) foi utilizada a forma quilombo$, para englobar todas as variações de sufixo e plurais associados ao termo, sendo aplicados os descritores “Psicologia” e “Quilombo$”, considerando as versões em inglês, e utilizando as combinações a partir dos operadores booleanos: “(Psicologia) AND (Quilombo$)” e “(Psychology) AND (Quilombo$)”; e 2) utilizou-se os descritores “Quilombo” e “Quilombola” com seus respectivos plurais associados ao termo Psicologia e sua versão em inglês: “(Psicologia) AND (Quilombo OR Quilombos)”, “(Psicologia) AND (Quilombola OR Quilombolas)”, “(Psychology) AND (Quilombo OR Quilombos)”, “(Psychology) AND (Quilombola OR Quilombolas)”. O procedimento de identificação da produção científica a partir dessas duas estratégias foi realizado em abril de 2023.
Após realizadas as buscas nas bases de dados, iniciou-se o processo de seleção dos artigos encontrados. A primeira etapa consistiu na exclusão de publicações duplicadas, sendo utilizado o Mendeley como ferramenta para auxiliar nesse processo; ou seja, todos os resultados encontrados foram importados para o programa e eliminados os artigos duplicados. O passo seguinte foi aplicar o critério de elegibilidade a partir da análise dos títulos e dos resumos, e, para tanto, foi criada uma planilha no Microsoft Excel contendo todos os títulos, os autores, o ano de publicação e o resumo. Dois pesquisadores fizeram a análise de maneira independente e selecionaram os textos para a próxima etapa. A partir desta fase, os artigos selecionados foram lidos na íntegra para verificação do seu atendimento aos critérios de elegibilidade.
Durante a leitura integral dos textos, uma estratégia complementar foi utilizada na busca de artigos, a fim de contemplar a maior literatura possível sobre o tema de quilombos e quilombolas produzidos no campo teórico da Psicologia no Brasil. Ou seja, foi realizada a verificação das referências bibliográficas de cada artigo selecionado para identificação de estudos que, porventura, não foram encontrados nas estratégias de buscas utilizadas via sistema de indexação.
Com a definição do corpus de dados a partir dos artigos selecionados, o conteúdo textual dos artigos foi analisado a fim de extrair informações a partir de critérios previamente estabelecidos pelos pesquisadores, contendo informações sobre produção, estratégias metodológicas, participantes da pesquisa, temática central, abordagem teórico-conceitual predominante, e síntese das principais contribuições da pesquisa. Essas informações foram sintetizadas em uma planilha no Microsoft Excel para melhor organização dos materiais coletados. A análise dos dados, por sua vez, foi realizada por meio de meta-síntese dos estudos através da análise de conteúdo categorial-temática ( Oliveira, 2008 ), que consiste em procedimentos sistemáticos para definição de unidades de registros associadas a temas e a subtemas.
Resultados
A partir das estratégias de busca utilizadas, foram encontrados 443 registros de publicações nas bases de dados pesquisadas. Seguindo os critérios de elegibilidade, foram selecionados 38 artigos para a análise, sendo que três foram encontrados pela estratégia complementar de verificação das referências dos artigos selecionados, conforme demonstrado na figura 1 .
Os resultados das análises são apresentados a partir da descrição de dois conjuntos de dados principais, sendo eles: i) caracterização geral da produção; e ii) meta-síntese dos temas associados aos estudos sobre quilombos e quilombolas.
Caracterização geral da produção
O primeiro artigo encontrado é datado do ano de 2003, marcando vinte anos de produção da área sobre a temática. Quanto à distribuição dos artigos publicados ao longo deste período, é possível observar um crescimento da produção na área entre os anos de 2019 e 2023, onde foram encontradas 20 publicações, que representam mais da metade da amostra ( figura 2 ).
Na figura 3 , apresenta-se o número de publicações por região do Brasil, sendo a maior parte dos estudos da região Nordeste (f = 17), seguida pela região Sudeste (f = 15). As demais regiões tiveram um número menor de publicações: a região Norte e a região Sul tiveram três publicações cada e não foi encontrado nenhum artigo realizado na região Centro-Oeste. Os estudos ocorreram em 12 estados diferentes, sendo que Alagoas, Espírito Santo e Pernambuco foram os estados com maior número de publicação (f = 5), seguidos por Rio Grande do Norte e São Paulo (f = 4), Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (f = 3), Pará e Rio de Janeiro (f = 2) e, por fim, Ceará e Rondônia (f = 1).
A maioria dos estudos foi desenvolvida exclusivamente por psicólogos, mas alguns artigos tiveram coautoria de pesquisadores de outras áreas, sendo elas: Ciências Sociais (f = 2), Educação (f = 2), Serviço Social (f = 2), Letras (f = 1), História (f = 1), Ecologia (f = 1) e Antropologia (f = 1). Também foram encontradas pesquisas realizadas exclusivamente por pesquisadores da Enfermagem (f = 2) e da Terapia ocupacional (f = 1), que utilizaram teorias do campo da Psicologia como referências para o desenvolvimento da pesquisa.
Sobre os periódicos em que foram publicados os artigos analisados, foram identificadas 24 revistas diferentes, com destaque para a revista Psicologia: Ciência e Profissão, que teve sete estudos publicados. No que se refere à qualificação destes periódicos, a maioria é avaliada como extrato “A”, segundo a classificação Qualis-CAPES 2017-2020, sendo duas avaliadas como A1, cinco classificadas, respectivamente, como A2 e como A3, e três categorizadas como A4. Já nos periódicos de extrato “B”, foram encontradas sete revistas classificadas como B1 e duas como B2. A maior parte dos periódicos tem a Psicologia (f = 17) como principal área, no entanto, tiveram artigos publicados em revistas interdisciplinares (f = 4), de Enfermagem (f = 2) e de Ciências da Saúde (f = 1).
No que se refere às estratégias metodológicas, se tratam de pesquisas cujo delineamento predominante é qualitativo (f = 36), em que somente dois estudos utilizaram o delineamento misto. Dentre as abordagens metodológicas, a etnografia (f = 10) foi a mais utilizada, seguida por pesquisas baseadas em intervenção 1 (f = 4), estudos de caso (f = 2) e etnopsicologia (f = 1). Os demais estudos não especificaram ou não mencionaram o tipo de pesquisa (f = 21).
A entrevista (f = 28) foi o procedimento de coleta mais utilizado, seguido pela observação participante (f = 14), roda de conversa (f = 4), questionário (f = 4), grupo focal (f = 2) e cartografia (f = 1). Sobre as entrevistas, na maior parte dos estudos se afirma que foi utilizado o roteiro de entrevista semiestruturado (f = 22) como instrumento de coleta dos dados, mas também foi citado o roteiro de entrevista aberta (f = 3), a história oral (f = 1), o relato de vida (f = 1) e a entrevista narrativa (f = 1). Dentre os estudos que utilizaram a observação participante, apenas seis relataram ter usado o diário de campo como instrumento; e aqueles que fizeram o uso de questionários, estes utilizaram questionário sociodemográfico (f = 2), Alcohol Use Disorders Identification Test (f = 1) e lista de complementação de frase (f = 1). Além desses instrumentos, também foram citados registro fotográfico (f = 2), desenho de moradia (f = 1) e discussão de caso (f = 1) como instrumentos de coleta de dados.
Quanto ao tratamento e análise dos dados, houve uma diversidade de abordagens utilizadas, mas o uso da análise de conteúdo (f = 15) foi predominante. Foram utilizadas, ainda: análise de discurso, análise descritiva das frequências, estratégias de classificação hierárquica descendente, análise fatorial de correspondência, análise fenomenológica, árvore de associação de ideias, categoria modos de partilhar, análise da perspectiva interseccional e identificação de significantes. Foi possível notar que em 11 dos estudos não foi mencionada nenhuma forma de tratamento e análise de dados.
Em relação aos grupos estudados dentro das comunidades quilombolas, houve maior predominância de trabalhos que focalizaram as mulheres (f = 10), seguidos de estudos intergeracionais (f = 5), jovens (f = 4), adolescentes (f = 4), crianças (f = 2), pessoas que fazem uso de álcool (f = 1), família (f = 1), pessoas idosas (f = 1) e pessoas em sofrimento mental (f = 1). Apenas três trabalhos mencionaram dados socioeconômicos, sendo fornecida a caracterização da renda das famí-lias da comunidade em até um salário mínimo.
Considerando as inserções teórico-conceituais dos trabalhos analisados, foi possível identificar as contribuições da teoria das representações sociais (f = 6) e da memória social (f = 4), do campo dos itinerários terapêuticos (f = 2), e dos conceitos de identidade política (f = 2), gênero (f = 2) e racismo institucional (f = 2). Além dessas referências, os seguintes conceitos foram usados como categoria de análise: identidade social, afeto, análise institucional, colonialidade do saber, apego ao lugar, discriminação racial, enraizamento, esquizoanálise, etnopsicologia, juventude, desigualdade social e ruralidade. Apesar dessa diversidade, em seis estudos não houve uma definição específica da abordagem teórico-conceitual utilizada.
Temas e discussões abordados nos estudos
A meta-síntese dos estudos foi realizada a partir da análise de conteúdo categorial-temática ( Oliveira, 2008 ), na qual foi possível identificar temas abordados nos artigos analisados (tabela 1). Foram identificados quatro eixos temáticos principais e subtemas específicos a cada eixo. Os eixos temáticos identificados foram: i) definição de quilombo, ii) ser quilombola, iii) Psicologia no quilombo e iv) saúde na comunidade.
O primeiro eixo temático é composto por 21 unidades de registros e foi nomeado de “Definição de quilombo”. Nele estão contidas informações a respeito do conceito de quilombo que foi utilizado nos artigos analisados, sendo dividido em três subtemas. O primeiro, chamado de histórica, contém definições baseadas exclusivamente em características ligadas à ideia do passado de fuga e de resistência ao escravismo, como demonstrado no fragmento: “Os quilombos no Brasil, segundo Munanga (1996), foram uma reconstrução do quilombo africano feita pelos escravizados para enfrentar a estrutura escravocrata e criar estratégias de proteção dos povos oprimidos” (Costa & Edmundo, 2020, p. 6).
No segundo subtema, foram reunidas definições baseadas em documentos jurídicos e marcos legais, que tem como foco a ressemantização do termo, buscando a garantia de direito dos chamados remanescentes de quilombo. Esta categoria foi nomeada jurídica em função do conteúdo característico que apresenta, conforme o seguinte extrato de texto:
O termo quilombo passou a assumir um novo significado a partir da Constituição Federal de 1988 (art. 68) (Brasil, 1988), quando foi reconhecida a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estivessem ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (Roso et al., 2011 , p. 347)
Por fim, o terceiro subtema foi nomeado de crítica, pois esta categoria contém definições que buscam apresentar uma visão crítica e complexa do termo, baseada na atribuição da identidade pela própria comunidade, como representado no trecho: “Assim, não é a comprovação de um passado associado à escravidão que define uma comunidade como quilombola, é a própria identidade daquele grupo que se afirma como tal” (Silva et al., 2017, p. 265).
No segundo eixo temático, intitulado “Ser quilombola”, foram encontradas 19 unidades de registros que se referem aos artigos que abordaram a identidade como tema principal de pesquisa. Este eixo foi dividido em dois subtemas, sendo o primeiro conjunto nomeado de processos identitários e o segundo, vivências da mulher quilombola. No primeiro, foram agrupados os artigos cuja preocupação era descrever e analisar processos e dinâmicas identitárias das comunidades quilombolas no geral. Como exemplo, podemos citar, entre outros: (i) o estudo desenvolvido por Alves (2019 ), que buscou analisar o processo de construção da identidade e memória coletiva através da relação entre a administração municipal de Quissamã-RJ, com a comunidade quilombola de Machadinha; e (ii) também o trabalho de Valentim e Trindade (2011), cujo objetivo foi investigar a identidade das comunidades quilombolas do Norte do estado do Espírito Santo, a partir dos impactos sociais e ambientais causados pela chegada de empresas de monocultivo de eucalipto na região.
Já no segundo subtema, chamado de vivência da mulher quilombola, estão presentes os artigos que se propuseram a analisar também a identidade quilombola, mas levando em conta a interseccionalidade com a categoria de gênero. Como exemplo, podem ser destacados: (i) o estudo realizado por Souza e Bonomo (2021), também desenvolvido na região Norte do estado do Espírito Santo, que analisou a identidade a partir da dimensão da memória étnica de mulheres quilombolas e líderes comunitárias; e (ii) o artigo de Fernandes et al. (2020), que buscou compreender os processos de subjetivação da identidade de mulheres quilombolas de Alagoas.
No terceiro eixo temático, nomeado de “Saúde na comunidade”, foram identificadas 11 unidades de registros relacionadas à análise da saúde nas comunidades quilombolas. Foram encontrados neste eixo dois subtemas, um sobre questões relacionadas à saúde mental e outro cujo foco principal foram as práticas em saúde nos quilombos. Nos artigos sobre saúde mental estavam presentes os estudos que analisavam as formas de cuidado em sofrimento psíquico nas comunidades quilombolas (Aciole & Silva, 2021; Batista y Rocha ,2019 ), como as pesquisas que refletiram sobre o uso abusivo de álcool nas comunidades (Dimenstein et al., 2019; Silva & Menezes, 2016). No que se refere ao subtema de práticas em saúde, este engloba pesquisas como o trabalho desenvolvido por Silva et al. (2020; 2021), que investigaram as representações sociais sobre os comportamentos relacionados à saúde de mulheres quilombolas, e o estudo de Fernandes e Santos (2019), que analisaram como moradores de comunidades quilombolas acessavam os serviços de saúde no cotidiano.
A “Psicologia no quilombo” é abordada no quarto eixo temático, composto por sete unidades de registros que contém textos sobre a inserção de profissionais da Psicologia em comunidades quilombolas. Neste eixo, foi possível identificar dois subtemas: (i) intervenções da Psicologia, que abordou relatos de experiências a partir da atuação em territórios quilombolas, e (ii) aspectos metodológicos, em que estão presentes estudos que tratam especificamente de ferramentas metodológicas utilizadas por psicólogos em suas pesquisas. Como exemplo desses subtemas, podemos citar, respectivamente, os estudos de Silva, Brandão e Batista (2020), que relataram sobre uma intervenção fruto de projetos de extensão na comunidade de Córrego de Ubaranas, no Ceará; e Roso et al. (2011), que abordaram os desafios da inserção do pesquisador-psicólogo em uma comunidade quilombola. Neste eixo temático, é importante ressaltar que, de maneira geral, os estudos não evidenciaram as metodologias utilizadas e os objetivos da pesquisa.
Discussão
A análise da produção acadêmica identificada por meio das estratégias metodológicas utilizadas no presente estudo, permitiu a elaboração de um panorama geral sobre como as comunidades quilombolas estão sendo compreendidas e abordadas pela Psicologia brasileira no campo da produção de conhecimento científico. De maneira geral, os resultados apontam que são recentes as pesquisas na área sobre quilombos em território nacional. Nesse sentido, ressalta-se que o processo de interiorização da profissão (Macedo & Dimenstein, 2011) associada à inserção dos psicólogos nas políticas públicas ( Yamamoto, 2007 ), bem como os marcos legais que garantem direito e acesso à terra pelas comunidades quilombolas (Ato das disposições constitucionais transitórias, 1988), foram fundamentais para que pesquisadores da Psicologia voltassem seu olhar para os territórios quilombolas.
Apesar de um aumento relativo da produção na área, principalmente nos últimos cinco anos, não é possível afirmar que exista um campo teórico-metodológico consolidado na Psicologia brasileira sobre comunidades quilombolas. Mesmo com o alerta do Conselho Federal de Psicologia (2019), identificando que pesquisas em Psicologia historicamente privilegiam contextos urbanos e apontando que há necessidade de se pensar em referências técnicas específicas para atuação profissional em quilombos, ainda não houve nenhuma publicação da instituição para superar essa lacuna. Nesse sentido, reitera-se o posicionamento de Félix-Silva et al. (2019), quando afirmam que a ausência de discussões aprofundadas sobre as práticas profissionais de psicólogos em contextos quilombolas contribuem para a perpetuação do racismo institucional.
Outro ponto que pode ser destacado nos resultados encontrados é a falta de estudos nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste do Brasil. Apesar da maior parte das comunidades estarem localizadas respectivamente nas regiões Nordeste e Sudeste, existem quilombos em todas as regiões do país ( Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística , 2020 ) e é importante destacar que os quilombos têm dinâmicas próprias em cada região (Batista & Rocha, 2019; Lopes et al., 2019), que precisam ser levadas em consideração para realização de pesquisas e intervenções.
Quanto à escolha das estratégias metodológicas, os resultados demonstraram a preferência por estudos exploratórios, em que a etnografia foi a abordagem metodológica mais utilizada. É possível que a escassez de estudos da Psicologia sobre comunidades quilombolas possa impactar na decisão sobre o uso do método etnográfico, pois este é recomendado para estudos que precisam compreender questões que ainda se tem pouco conhecimento (Angrosino, 2009). Ainda sobre os aspectos metodológicos, foram identificados também estudos que relataram intervenções realizadas por psicólogos em comunidades quilombolas, mas não foram explicitados os procedimentos metodológicos de avaliação da intervenção. Entende-se que no campo das metodologias participativas há uma multiplicidade de sentidos e teorias que envolvem seus aspectos metodológicos (Renault & Ramos, 2019), no entanto, é importante apontar a necessidade de desenvolvimento de pesquisas que produzam indicadores de qualidade das práticas e intervenções da Psicologia em comunidades quilombolas.
A definição do termo quilombo é uma discussão pertinente para os pesquisadores que pretendem estudar os territórios quilombolas. As concepções de quilombo e quilombola adotadas possuem implicações teóricas e políticas que, a depender dos seus usos e proposições, podem reforçar estigmas e gerar processos de exclusão ( Leite, 2000 ). Nos resultados deste estudo, foi possível identificar três categorias de definições de quilombo utilizadas nas produções analisadas: i) uma definição histórica, na qual predomina uma visão associada ao passado de resistência à prática escravista; ii) uma definição jurídica, baseada nos marcos legais que garantem e operacionalizam o acesso da comunidade à terra; e iii) uma definição crítica, que busca compreender as múltiplas possibilidades e está baseada na autoatribuição identitária pelo grupo.
A maioria das definições de quilombo utilizadas nos trabalhos analisados privilegiou aspectos das definições históricas ou jurídicas. É possível debater que se estas definições estiverem descontextualizadas dos desafios que envolvem o termo, tais usos podem reforçar um imaginário social que estigmatiza e folcloriza as comunidades quilombolas. Neste sentido, reitera-se as afirmações de Leite (2000 ) sobre a importância de haver um refinamento conceitual sobre as várias situações e contextos que envolvem os territórios quilombolas nas pesquisas em Psicologia sobre quilombos no Brasil.
O debate sobre os processos identitários, por sua vez, foi apontado como o assunto mais abordado nas produções encontradas, com destaque para as publicações que consideram a interseccionalidade com as questões de gênero. A identidade vem sendo discutida a partir de várias perspectivas teórico-metodológicas, mas, de forma geral, na análise das dinâmicas identitárias estão implicados os processos de pertencimento grupal e as relações do grupo com a alteridade (Tajfel, 1982). É possível identificar nos artigos analisados fenômenos de base conflitiva entre as comunidades quilombolas e grupos não quilombolas (Estado, empresas de monocultivo, empreendimentos imobiliários, universidade, entre outros), cujo conflito está, geralmente, pautado em uma perspectiva naturalizante, que folcloriza e exclui as tomadas de posição identitárias dos quilombolas. Nesse sentido, a Psicologia pode contribuir para a ampliação e o fortalecimento do debate sobre o campo identitário sociopolítico, participando de um processo de garantia e defesa do direito sobre a própria existência e a construção de significados acerca de seus modos de vida e do que é ser quilombola (Almeida, 2011; Fernandes et al., 2020).
Nesta mesma perspectiva de reflexão, a temática da saúde também foi um tema relevante dentro dos estudos analisados; no entanto, ainda existem poucos trabalhos que articulam os marcadores sociais e culturais das comunidades quilombolas e as demandas de saúde dentro dos territórios (Fernandes & Santos, 2019). As condições de saúde de populações rurais e povos tradicionais, como é o caso dos quilombos, são marcadas por vulnerabilidades associadas à falta de acesso a serviços e produtos de saúde, quer seja público ou privado, e conflitos territoriais que também causam adoecimento (Savassi et al., 2018). Entende-se, portanto, que é preciso promover estudos em Psicologia que possam contribuir para o planejamento de políticas públicas que levem em consideração o contexto vivenciado nos territórios e que estejam aliadas aos saberes e práticas produzidos nos quilombos (Fernan-des & Santos, 2019).
Considerações finais
Neste estudo foi possível identificar e caracterizar a produção científica da Psicologia brasileira sobre quilombos e quilombolas, abarcando um período de 20 anos. A partir dos resultados encontrados, nota-se que a produção brasileira é ainda escassa e limitada, não sendo suficiente para responder às demandas das comunidades quilombolas. Também foi possível sinalizar que a Psicologia é um campo fértil e tem muito a contribuir nas discussões sobre territórios quilombolas, desde que suas práticas de pesquisa e de intervenção estejam pautadas em concepções críticas que valorizem o conhecimento e o saber produzidos nos quilombos. Espera-se que este estudo possa auxiliar os pesquisadores da Psicologia que tenham interesse em aprofundar sobre o tema, apontando os desafios e as potencialidades da área para sua atuação nos territórios quilombolas como ciência e profissão.
Quanto às limitações deste estudo, tentou-se analisar todos os artigos científicos publicados pela área que abordam a temática quilombola no Brasil. No entanto, mesmo utilizando três estratégias de buscas diferentes, é possível que artigos indexados em outras bases de dados possam não ter sido identificados. Ainda assim, o objetivo de caracterizar a produção da Psicologia brasileira sobre o tema foi alcançado.
Como tarefa para pesquisadores e psicólogos interessados neste campo de atuação, permanece o desafio de superar a ideia de Psicologia “no” quilombo, onde se busca simplesmente transplantar pressupostos para serem executados nos quilombos, e efetivamente construir uma Psicologia “do” quilombo, fundamentada em uma construção teórico-metodológica coletiva e que dialogue com as pautas e saberes das comunidades quilombolas. Essa perspectiva pode criar oportunidades para a superação de práticas que violam o direito fundamental de afirmação da existência e singularidades a partir do próprio grupo, bem como contribuir com a construção de estratégias de atuação que marquem o nascimento efetivo de uma Psicologia que se traduza e se reconheça em um processo contínuo de aquilombamento.
Resumo:
Introdução
Método
Resultados
Caracterização geral da produção
Temas e discussões abordados nos estudos
Discussão
Considerações finais